PIL

O ciúme. Que irritante. Ele é uma expressão da avidez da propriedade. Ou da petulância do domínio. Ou do gosto da escravização.

Todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior. E o seu drama, desde sempre, é o de querer preenchê-la.


Vergílio Ferreira

Biografia

Nasceu em Melo, no concelho de Gouveia, em Janeiro de 1916, filho de António Augusto Ferreira e de Josefa Ferreira. A ausência dos pais, emigrados nos Estados Unidos, marcou toda a sua infância e juventude. Após uma peregrinação a Lourdes, e por sugestão dos familiares, frequenta o Seminário do Fundão durante seis anos. Daí sai para completar o Curso Liceal na cidade da Guarda. Ingressa em 1935 na Faculdade de Letras a Universidade de Coimbra, onde concluirá o Curso de Filologia Clássica em 1940. Dois anos depois, terminado o estágio no liceu D. João III, nesta mesma cidade, parte para Faro onde iniciará uma prolongada carreira como docente, que o levará a pontos tão distantes como Bragança, Évora ou Lisboa.
Este homem reuniu em si diversas facetas, a de filósofo e a de escritor, a de ensaísta, a de romancista e a de professor. Contudo, foi na escrita que mais se destacou, sendo dos intelectuais contemporâneos mais representativos. Toda a sua obra está impregnada de uma profunda preocupação ensaística.
Vergílio foi também um existencialista por natureza. A sua produção literária reflecte uma séria preocupação com a vida e a cultura. "Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta a espera para que a vida continue. Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação". 
Vergílio entregava-se à escrita de corpo e alma, tinha essa obsessão; após a qual se sentia vazio, mas depois de um livro voltava a renovar-se para dar corpo a outro. "Escrever, escrever, escrever. Toma-me um desvairamento como o de ébrio, que tem mais sede com o beber para o beber, ou do impossível erotismo que vai até ao limite de sangrar. Escrever. Sentir-me devorado por essa bulimia, a avidez sôfrega que se alimenta do impossível".(Pensar, 1992).
A obra de Vergílio Ferreira recebeu influências do existencialismo de Satre, de Marco Aurélio, Santo Agostinho, Pascal, Dostoievski, Jaspers, Kant e Heidegger. Os clássicos gregos e latinos como Ésquilo, Sófocles e Lucrécio, também assumiram uma importância vital nos pensamentos deste escritor. 
 Este escritor, que aos 80 anos declarou " vou entrar a escrever no paraíso", veio falecer a 1-3-1996. Deixou um livro entregue ao editor, publicado posteriormente intitulado Cartas a Sandra (1996), em que se pode reencontrar a personagem Xana, filha do narrador do romance Para Sempre, apresentando ao leitor cartas escritas pelo pai à sua mãe. Após a morte do escritor a Câmara Municipal de Gouveia e a Universidade de Évora criaram prémios literários em memória de Vergílio Ferreira. O espólio do escritor composto por prémios, livros e alguns objectos pessoais foi doado a Gouveia, concelho de onde Vergílio Ferreira era natural e estão em exposição na Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira. O seu espólio de originais manuscritos de quase todos os seus romances foi doado à Biblioteca Nacional.


Ficha de leitura

Obra completa: Contos


Apreciação do processo de leitura

Uma Esplanada sobre o Mar

Ação

O conto começa com a descrição de uma rapariga loura, de olhos claros e de pele bronzeada que se encontra numa esplanada sobre o mar a contemplar as ondas enquanto espera por um rapaz, de cabelos loiros como ela, que a convida para lhe fazer uma revelação.

Quando o rapaz chega, a rapariga fica surpreendida pela sua atitude misteriosa e pensativa. No decorrer da conversa este mostra-se pouco explícito em relação ao objectivo da mesma, o que torna a rapariga um pouco impaciente, insistindo constantemente: " Que me querias dizer?", " Que é que querias?".
Serenamente, o rapaz explica-lhe que existem certos momentos da vida em que dedicamos especial atenção aos mais pequenos pormenores de uma forma particularmente intensa. É nesses momentos que tomamos consciência que podemos perder tudo de um dia para o outro. O rapaz finaliza, então, revelando-lhe o que o médico lhe dissera: restam-lhe apenas três meses de vida.


- Não há nada mais igual do que o mar ou o lume ou uma flor. Ou um pássaro. E a gente não se cansa de os ver ou ouvir. Só é preciso que se esteja disposto para achar diferença nessa igualdade. Posso olhar o mar e não reparar nele, porque já o vi. Mas posso estar horas a olhar e não me cansar da sua monotonia.

-Mesmo as coisas mais banais são diferentes se alguma coisa importante se passou em nós.

Tempo

Não há qualquer referência temporal.


Espaço

Julgo que nunca consegui visualizar tão claramente um cenário como este. O narrador descreve o espaço da ação como sendo um dia de verão, um céu azul  onde numa esplanada sobre o mar cristalino se encontra uma rapariga loira, de vestido branco e muito morena. Um ambiente que nos transmite uma sensação de paz e tranquilidade. 

Sendo uma eterna apaixonada pelo mar como sou, devo admitir que adorei este conto não só pela excelente moral, mas também devido a estas descrições maravilhosas de Vergílio Ferreira especialmente neste conto que descreve o mar e toda a harmonia que ele nos traz.

A rapariga estava sentada a uma mesa numa esplanada sobre o mar. Vestia de branco e era loura, mas muito queimada do sol. Ao lado da mesa estava montado um guarda- sol giratório de pano azul que o criado veio regular, para acertar bem a sombra. O criado não perguntou nada e inclinou- se apenas e a rapariga pediu um refresco. Era a meio da tarde e o sol batia em cheio no mar, que se espelhava aqui e além em placas rebrilhantes. O céu estava muito azul e o ar era muito límpido, mas no limite do mar havia uma leve neblina e os barcos que aì passavam tinham os traços imprecisos, como se fossem feitos também de névoa. Na praia que ficava em baixo não havia quase ninguém e o mar batia em pequenas ondas na areia. A espuma era mais branca, iluminada do sol, e o ruído do mar era quase contínuo e espalhado por toda a extensão das àguas.


Personagens

Neste conto existem duas personagens: a rapariga descrita inicialmete, e o rapaz que se encontra com a mesma, na esplanada sobre o mar.

Relativamente à rapariga podemos descrevê- la como uma personagem persistente em relação ao rapaz. Esta interpela- o  repetidamente com a finalidade de saber o que o levou a marcar aquele encontro. Quando finalmente esta tem conhecimento da razão que o levou até aquela esplanada naquele dia tão harmonioso, esta personagem revela compaixão e compreensão em relação ao rapaz o que demonstra que é uma personagem redonda, pois esta muda de atitude ao longo do conto, à medida que se vai confrontando com aquela realidade cruel: a morte do rapaz.

Focando a atenção agora para a outra personagem, o rapaz, podemos concluir, a partir da leitura do conto, que a partir do momento que tomou conhecimento da sua morte este muda drasticamente de perspetiva  em relação a tudo o que o rodeia, até as coisas mais banais da vida. Este não se revela revoltado com esta realidade, pois invés de adotar uma postura negativa ou até mesmo depressiva, este escolhe apreciar todos os momentos que ainda lhe restam e valorizá- los o máximo possível.

- Gosto de te ver - disse depois. - Gosto de te ver como nunca. Fica-te bem o vestido branco.

- Já mo viste tanta vez. 

- Nunca to vi como hoje. Deve ser do sol e do mar.

- Que é que querias?

- Deve ser dos olhos limpos com que te vejo hoje.


Narrador

O narrador narra na 3ª pessoa, pois este só aparece na narrativa para descrever ações ou personagens. 



Indicação e opinião acerca do tema principal do conto ( moral do conto)

O título do conto levou-me a pensar num dia calmo e tranquilo, visto ter lugar numa esplanada à beira mar. A paisagem descrita pelo narrador é apenas um cenário da acção.
Os dois protagonistas incorporam a mensagem do conto. O rapaz fica fascinado com o mundo que o rodeia e se transforma continuamente, porque, até aí, nunca valorizara as coisas banais do seu quotidiano.
A notícia que recebera do médico fê-lo mudar a sua perspectiva sobre o mundo. Não se revolta contra a morte que lhe rouba a sua maior fortuna, a vida. Decide apenas sentir intensamente o que lhe resta dela. Não considera a morte como o fim da sua existência porque "a vida não é verdade". Nós não sabemos aproveitá-la para vivermos felizes e a morte é apenas a próxima grande aventura.
Os homens são cegos porque recusam ver e desfrutar das coisas mais simples da vida (o nascer do Sol, as ondas do mar, ...).
A moral do conto salienta o preconceito da morte de que todas as pessoas tentam escapar mas sem sucesso. "Às vezes Deus usa a morte quando nos quer mostrar a importância da vida", é a mensagem do conto.

- Tudo pode estar certo talvez a qualquer hora. Menos essa banalidade da morte. De tudo se pode falar, menos dela. Nem falar, nem filosofar, nem fazer seja o que for que a tenha a ela em conta. Há uma aliança contra ela como contra uma infâmia. Ou como se o não falar a excluísse. E é a única verdade perfeita.

(...)

- A estupidez é nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita- disse o rapaz.


- O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia a dia. E é extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia a dia. E três meses no máximo.

(...)

- Sim - repetiu a rapariga. - Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditat também. Está um dia cheio de sol.

- Mas a explicação é simples- disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. - Eu vou explicar tudo. Eu vou.

Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.


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